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quarta-feira, 23 de julho de 2008

ÉTICA DO JUIZ

CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Falar sobre a ética impõe, pelo menos, estabelecer a sua acepção. Na realidade, a ética é uma parte da filosofia que estuda, investiga, os princípios que orientam o comportamento do ser humano, e, ainda, a essência dos valores que estão presentes em qualquer realidade social. Há, portanto, um componente de permanência no seu conceito, que perpassa a realidade social de um determinado momento da história. Há, em suma, um vínculo intemporal, que dá um sentido próprio ao viver do indivíduo.
Johannes Messner, no seu monumental livro Ética social, política e econômica, ensina que a tarefa da ética consiste na investigação da ordem natural que corresponde à realidade presente do ser. Com isso, o que está na essência da ética são princípios e valores que antecedem a realidade vivida, a partir de uma concreta visão do homem na sua específica natureza no reino animal. Daí a idéia que perpassa a perspectiva do homem como ser social e individual. Por isso mesmo, alcança a plenitude na ordem social, porque a sua natureza necessita integração na sociedade, ou seja, a natureza individual do homem não pode desenvolver-se sem a presença dos outros homens. Ninguém se basta a si mesmo. Em conseqüência, a sociedade é a união de seres humanos para uma vida comum, na relação de necessidade - capacidade, em que todos e cada um contribuem para a consecução do ser do indivíduo nos seus fins existenciais.

A consciência da ética como presença na totalidade da ordem social, antes e agora e depois, permite visualizar uma outra face do comportamento humano, o campo da moral, como conduta, ligada ao agir
* Palestra proferida no Seminário “Ética e Justiça”, promovido pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Rio de Janeiro – RJ. Outubro de 2002
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do homem relativamente aos seus semelhantes e à sociedade. É possível descobrir, então, que a moralidade é para o homem, como está em Messner, a reta natureza (das Naturrichtige) em harmonia com os fins existenciais, ou seja, a moral é a reta natureza porque esta é exigida para a plena realização da condição do homem como ser individual e social. O bem para o homem é, portanto, a plenitude de sua natureza racional. Como está em Santo Agostinho, há uma relação recíproca entre realidade e moralidade, somente o bem, nunca o mal, podendo converter-se em realidade definitiva, exatamente, porque o mal é uma imperfeição do ser, uma deficiência da plena realização exigida pela natureza. Há, sem dúvida, no plano moral, um antagonismo entre o bem e o mal, tendo como referência a natureza do homem tanto individual como social. Haveria, nesse sentido, um instinto fundamental da natureza humana para a realização do bem, não naquela perspectiva kantiana da chamada “ética da intenção”, em que a moralidade está na reta intenção consistente na vontade de fazer o bem somente porque é dever, ao contrário de Santo Tomás e de Santo Agostinho que consideram a reta razão como a razão em harmonia com o verdadeiro bem, o bem objetivo. Também não se trata de enxergar a moralidade como as conseqüências externas da conduta com vistas aos interesses sociais, tal e qual a sociedade pode julgar, fazer a axiologia da conduta humana.
Por essa razão é que se fala, em relação ao agir dos profissionais, com mais propriedade, em deontologia, isto é, em teoria do dever. O dever, está em Messner, é uma necessidade condicionada (hipotética), porque está em sua autodeterminação, e incondicionada (absoluta, categórica), porque a plena realização da natureza humana admite apenas uma conduta que esteja de acordo com a lei natural, eu diria, com a realidade da natureza humana e a sua reta intenção. Aquele que atua em sentido contrário está fora da conduta própria, imperativa, da característica individual e social do homem.
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A respeito da descoberta do código genético e o mistério da vida, é possível encontrar em Sócrates a lição de que a busca do conhecimento é um bem. Como escreveu Bertrand Russell, o vínculo entre o bem e o conhecimento é mesmo um marco presente em todo o pensamento grego. E sobre a utilização da descoberta do código genético, a começar pela clonagem humana, é um problema de natureza ética, isto é, saber se pode o homem, na busca do conhecimento, sacrificar a vida. Então, não é possível confundir o termo ética, utilizado por Aristóteles em dois livros, Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo, mas já presente em toda a filosofia grega mesmo antes dele, com o termo moral. É certo que muitos ainda pensam que ética e moral são palavras sinônimas, o que tem, certamente, origem na recepção do termo grego pelos romanos. O que vale, porém, é considerar a ética no sentido da conduta humana e não dos hábitos e costumes de uma determinada comunidade.
Dando um passo adiante, a ética está naquele plano superior, permanente, passando do tempo ao tempo, sem interrupção, na base da própria natureza do ser do homem, na sua integridade individual e social; por isso, a moral parte desse plano para alcançar a conduta humana em termos de bem e de mal, na afirmação maior de que o bem é a destinação natural do agir do homem.
Ao se considerar essa visão da totalidade, é possível situar melhor ao ingressar no plano profissional. Não se trata de falar com operadores do Direito. Essa expressão mediocriza a ocupação de membros de um poder específico do Estado, aquele de dizer o Direito, de distribuir a Justiça, função tão antiga, e antiga a sua singularidade.
O Código de Manu, na Índia, prescrevia que o rei tinha de comparecer com seus conselheiros experimentados, à Corte de Justiça para julgar as causas, podendo incumbir um sábio brâmane, versado no livro dos Vedas, com mais três juízes de indicação das partes, para compor o que se chamou de “Tribunal de Brama das quatro faces”.
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Aqui, fala-se, portanto, com aqueles que são herdeiros de uma tradição imemorial, que tem um ponto de culminância histórica na criação do Areópago, com a reforma de Sólon, até a criação do “dicastério”, o tribunal popular, o júri da antiga Grécia, originário do progresso da democracia ateniense, com mais de duzentos dicastas, podendo chegar a mil, e, ainda, em causas pequenas e cíveis, podendo funcionar com juízes singulares.
Mário Guimarães, no seu clássico O Juiz e a Função Jurisdicional, escreve que no Juiz
o fazer Justiça é o alvo, a tarefa, a missão, o sacerdócio. O juiz existe para isso. É o órgão específico mediante o qual exercita o Estado uma de suas funções essenciais - a função jurisdicional (pág. 34).
Ressalte-se que ser Juiz é mais do que ocupar um cargo pelo qual se recebe uma determinada importância ao final de cada mês; não é, assim, apenas um emprego a ser exercido depois de aprovado em um concurso público.
A começar por esse conceito inaugural, há uma série de conseqüências. Entender que o cargo de Juiz é um meio de manter a vida material e familiar, o elemento agregador será, mantida a perspectiva ética imutável, menos exigente do que se entender que ela é, sobretudo, a manifestação soberana do Estado para dirimir, com a força coativa a que se referia Duguit em suas conferências de 1926, no Cairo, os conflitos entre o Estado e as pessoas e entre estas, a partir da garantia da liberdade, ou da reserva do espaço do homem diante da onipotência do poder do Estado, marca da história do Direito Constitucional e do nascimento dos grandes documentos que preservam até hoje os direitos fundamentais do homem e do cidadão.
Para que se possa entender o sentido da deontologia da Magistratura, deve-se perceber que o Juiz não é um burocrata do Estado,
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o que está subjacente à idéia da expressão “operador do direito”, mas, o próprio Estado quando presta a jurisdição, quando diz aquele que tem direito, aquele ao qual a interpretação da lei beneficia na contenda judicial, na causa.
Não é por outra razão que Ronald Dworkin, em O Império do Direito, lembrou um famoso Juiz americano que dizia ter mais medo de um processo judicial que da morte ou dos impostos:
A diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo juiz no dia seguinte. As pessoas freqüentemente se vêem na iminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo (pág. 3).
A decisão judicial é, portanto, uma das chaves das modernas sociedades democráticas, em que influem variados fatores, desde a simples formação do Magistrado, do seu conhecimento da ciência do Direito, das suas circunstâncias pessoais, da cultura do seu tempo. Não é por outra razão que tantos teóricos estudam a atividade jurisdicional, a começar por Peter Häberle, afirmando que a
vinculação judicial à lei e a independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade (...). Seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas influências contêm também uma parte de legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação judicial. A garantia da independência dos juízes somente é tolerável, porque outras funções estatais e a esfera pública pluralista (pluralistiche öffentlichkeit) fornecem material para a lei (A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, págs. 31/32),
até Heck com a sua “jurisprudência dos interesses”, para o qual o Juiz que tem uma atividade criadora, estando subordinado à lei, deve adequar a decisão judicial à realidade da vida, presentes os interesses de toda
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ordem no momento da aplicação da lei, e Stammler, Windelband, Radbruch, entre outros, com a “jurisprudência dos valores”, que nasce para reconhecer um campo até então esquecido que é a cultura como referência, na grande afirmação do Direito justo. Como está em Stammler, o Direito justo é consoante com o ideal social.
O Juiz está alçado a uma tal altura na ordem social, que a sua atividade científica pode dar o tom dessa mesma ordem. E pode fazê-lo, porque o seu desempenho decide a vida das sociedades, não apenas nas relações entre os particulares, mas, também, entre estes e o Estado, e o que é primordial, dá a diretriz da cidadania na interpretação da lei e do Estado soberano, no mundo globalizado, enquanto particulariza a ordem jurídica nacional, tendo por base a interpretação constitucional. Na verdade, a nação será aquilo que os intérpretes da lei digam que ela é, no que tem de fundamental para a organização da sociedade. A razão disso é que o Juiz é, também, um intérprete da sociedade do seu tempo.
Na interpretação visualiza-se bem o problema da personalidade do Juiz, que mestre Barbosa Moreira indica ser
o complexo dos traços que o distinguem de todos os outros seres humanos e assim lhe definem a quente e espessa singularidade(...). Aí se compreenderiam desde as características somáticas do magistrado – v.g. sexo, idade, cor da pele, condições de saúde física etc. – até elementos relativos ao seu background familiar, às suas convicções religiosas, filosóficas, políticas, aos conceitos (preconceitos) que tenha acerca dos mais variados assuntos, à sua vida afetiva, e por aí afora (Temas de Direito Processual: sexta série, São Paulo, Ed. Saraiva, 1997, págs. 145/146).
Esse conjunto de qualidades tem influência decisiva no trabalho de interpretação que o Juiz realiza.
Há um verdadeiro existir comum da individualidade do Juiz e os valores e princípios que regem o seu tempo, isto é, no campo da
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moral, entre a pessoa do julgador, as suas convicções, e o bem e o mal na cultura da sociedade que o investiu na função judicante.
Em livro de extraordinária utilidade, que todos deveriam ter como leitura obrigatória, A Natureza do Processo e a Evolução do Direito, Benjamin Nathan Cardoso, Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, considerando a questão de como deveria decidir um Magistrado diante do conflito entre suas convicções e as convicções da comunidade, presente a resposta de um seu colega, que indicava a predominância das convicções pessoais do Juiz, ofereceu grande lição. Disse ele que a hipótese
não se verificará, provavelmente, na prática. Raro, na verdade, será o caso em que nada mais exista para inclinar a balança, além das noções contraditórias sôbre o procedimento correto. Se, entretanto, o caso suposto aqui estivesse, creio que erraria o juiz que quisesse impôr à comunidade, como norma de vida, suas próprias idiossincrasias de procedimento ou de crença. Suponhamos, por exemplo, que um juiz que encarasse a freqüência a teatros como pecado. Estaria êle agindo bem se, num campo em que a jurisprudência ainda não estivesse assentada, permitisse que sua convicção governasse sua decisão, apesar de saber que aquela estava em conflito com o standard dominante do comportamento correto? Penso que êle estaria no dever de se conformar aos standards aceitos da comunidade, os mores da época. Isso não significa, entretanto, que um juiz não tenha o poder de levantar o nível de comportamento corrente. Em um ou outro campo de atividade, as práticas que estão em oposição aos sentimentos e standards de comportamento da época podem crescer e ameaçar entrincheirar-se, se não forem desalojadas. Apesar de sua manutenção temporária, não suportam comparação com as normas aceitas da moral. A indolência ou a passividade tolerou aquilo que o julgamento meditado da comunidade condena. Em tais casos, uma das mais altas funções do juiz é estabelecer a verdadeira relação entre o comportamento e as idéias professadas. Pode até acontecer, e expressamo-nos aqui um tanto paradoxalmente, que apenas uma medida subjetiva satisfaça padrões objetivos. Algumas relações, na vida, impõem o dever de agir de acordo com a moralidade costumeira, e apenas isso. Nessa hipótese, a moralidade costumeira deverá constituir, para o juiz, o standard a adotar (págs. 61/62).
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Sem dúvida, é possível mesmo sentir isso no dia-a-dia. Há uma relação direta e imediata entre aquilo que se pode denominar de cultura do tempo vivido, como a missão de decidir uma causa, de dar ou negar uma medida liminar. A idéia de moralidade aqui está nos conceitos de certo e errado, bem e mal, bom e mau.
Quando Recaséns Siches proclamou a lógica do razoável, o que ele fez, de fato, foi considerar um grupo de circunstâncias que o julgador deve ter em mente quando emite uma decisão. Não é por outra razão que a lógica do razoável tem como referência a realidade do mundo em que o Juiz atua. O grande filósofo do Direito mostrou que o processo de interpretação de uma norma geral diante de casos singulares, a individualização das conseqüências dessas normas para tais casos e as variações que a interpretação e a individualização devem ir experimentando,
todo eso, debe caer bajo el dominio del logos de lo humano, del logos de la acción humana. No es algo fortuito, ni tampoco algo que pueda ser decidido arbitrariamente. Es algo que debe ser resuelto razonablemente (Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho, pág. 140).
A aplicação do poder estatal para dizer o Direito, toma a realidade como referência. E essa realidade é o nosso existir temporal, aquilo que vivemos diariamente, e que, em um certo sentido, está contida nos autos como instrumento para chegar a uma dada decisão pelo conhecimento da verdade dita formal.
A decisão espelha o poder do Estado e, portanto, não é um ato desvinculado da sociedade, isto é, a solidão do Juiz ao decidir é, apenas, o significado da sua independência, não o isolamento do mundo que está em torno.
O Juiz, por isso mesmo, não pode decidir agredindo a realidade; nem, tampouco, pode demonstrar com atos judiciais extremos
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o seu poder estatal, emanado da constituição. A força da decisão judicial é a sua compatibilidade com as condições concretas da sociedade, é a sua adequação ao critério do que é razoável, presente a lei, com o que o julgado e a sua conseqüência têm equilíbrio; mas é, também, o resultado da sua autoridade, que se manifesta na sua investidura, da sua capacidade de convencer, que se manifesta na força da fundamentação dos seus julgados, e, ainda, da sua integridade, que se manifesta na sua vida profissional e pessoal.
Como é possível estabelecer um padrão de comportamento que reflita esse conceito de integridade? Certamente ele está vinculado diretamente à moral.
O professor Ernest Tugendhat, da Universidade Livre de Berlim, até sua aposentadoria, em 1992, em conferência proferida na Universidade de Brasília, sob o título “Como devemos entender a moral?”, ofereceu belos contextos da moral em suas múltiplas acepções.
Para Tugendhat, moral é o sistema de normas sociais sob o qual os indivíduos vivem por toda a vida. A cada moral, nesse sentido, pertence também um conceito de boa pessoa. Uma pessoa é boa, no sentido moral, se ela se comporta da mesma maneira que é exigida reciprocamente para todos os membros da comunidade moral. Esta exigência recíproca, escreve Tugendhat, expressa-se em um tipo de orações de “dever”. Qual o tipo? Para aclarar-se qual é o sentido de um dever sempre é útil perguntar: o que sucede quando um indivíduo que deve atuar de uma determinada maneira não o faz? No caso da moral, quando alguém não atua da maneira que é exigida reciprocamente, surge a pressão social; o significado disso é ficar exposto à indignação dos outros membros da comunidade moral. Se a pessoa se considera como membro da mesma comunidade moral, ela também reage com revolta quando outros fazem o mesmo. Isso implica, no seu próprio caso, que ela sente (internaliza) o sentimento dos outros, o que quer dizer que se sente 9
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culpada. Tal tipo de dever, que consiste em exigências recíprocas, não se poderia entender se, em caso de violação, não houvesse uma sanção. E a sanção consiste, precisamente, nos sentimentos complementares de indignação e culpa. Para Tugendhat, o sentido da moral, de que ele parte, contém uma série de traços conectados uns aos outros. É, portanto, um sistema de exigências recíprocas que expressas em um tipo de orações de dever; a obrigação nelas contida baseia-se nos sentimentos de indignação e culpa. No fundo, um sistema de regras morais existe, apenas, se aqueles que o aceitam, consideram-no justificado. A comunidade moral, portanto, é definida pelo conjunto das pessoas que aceitam essas normas, quer dizer, estão dispostas aos sentimentos correspondentes e consideram que as normas são justificadas.
Émile Faguet, da Academia Francesa, em obra antiga de 1910 (La Démission de la Morale), escreveu que a moral é a ciência, ou a arte, que pode ou dar aos homens as regras de sua conduta através da vida ou as indicações sobre a conduta que deverão seguir durante sua vida.
Na verdade, o que tem intensa claridade em tudo isso é a possibilidade de redução dos conceitos aos comportamentos humanos diários da vida de um Juiz. É claro que não há sequer cogitação sobre a imperativa honorabilidade. Aquele que não é capaz de resistir às tentações da vida mundana, da vida de favores, do simples up grade em uma viagem de avião até a oferta de favorecimento na compra de qualquer bem material, põe a sua integridade em confronto com a deontologia, com a teoria do dever inerente ao Magistrado.
Veja-se a lição simples de Messner, tomando a deontologia na sua forma mais ampla, não particular: é de grande importância também a distinção entre bem e dever, porque mesmo quando o bem, pelo menos na forma de evitar o mal, constitui sempre o objeto do dever, todo bem não representa, porém, um dever para o homem. Está obrigado a fazer o bem o que é indispensável para permanecer em harmonia com a sua 10
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natureza essencial, com os seus fins existenciais. Da conexão existente entre o bem e o dever pode deduzir-se, ademais, que grande parte de nossos deveres, que são formulados na forma negativa de uma proibição, são só aparentemente negativos. Na realidade, todos eles são positivos. “Não roubar” significa em realidade “conserva em tua conduta relacionada com a propriedade alheia a ordem que exige tua natureza.”
O comportamento do Juiz lhe impõe deveres maiores do que aqueles que são pertinentes a outras atividades humanas. São maiores não porque as exigências da sua natureza essencial são diferentes, mas, sim, porque o seu destino na sociedade é mais complexo, a sua força reside na sua conduta pessoal e profissional. Não pode desviar-se dela em nenhum momento, sob pena de pôr em risco toda a própria sociedade que ele tem a obrigação de preservar como poder do Estado encarregado de prestar a jurisdição.
O Juiz que bebe até cair, aquele que joga, que aceita favorecimento, que despreza as suas vestes talares, que não tem compostura no trato individual com os seus semelhantes, não tem condições deontológicas de exercer a Magistratura. Não são sinais exteriores supérfluos, como pode parecer à primeira vista; ao contrário, são sinais que marcam a sua presença como responsável para fazer valer o poder do Estado e que ficam maculados com o descrédito da sociedade, em uma relação de causa e efeito sobre a força da decisão judicial, da própria função judicante. Imagine-se o Juiz que não cumpre os horários das audiências, que está nesse mesmo horário cumprindo obrigações outras, fora da atividade jurisdicional. Quando assim age, seja em primeiro seja em segundo grau, está prejudicando a sociedade como um todo e desrespeitando o seu juramento como Juiz. E tanto assim é que dará um tratamento diferente se o atraso for do advogado, fazendo valer dois pesos no que deve ser apenas um. Exigirá que se compreenda o seu
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atraso, mas não livrará o advogado, na mesma situação, da conseqüência legal.
O que se quer dizer, de fato, é que o Magistrado está vinculado a uma determinada liturgia, que identifica o seu agir.
E nos momentos de trânsito republicano e democrático, tal liturgia, que está ligada aos deveres inerentes ao exercício da judicatura, é ainda mais necessária. O respeito do próximo só se conquista com o respeito próprio, com uma conduta que fique acima de qualquer dúvida razoável, que não autorize suspeita de qualquer espécie.
Há lembrança de recurso especial, relativo a uma ação de indenização, embora inviável de conhecimento pela Súmula nº 07 da Corte, em que assinalado, à unanimidade, que a situação peculiar do especial
não dispensa que se tenha como recomendável para um Magistrado abster-se, por inteiro, de qualquer tipo de manifestação pública que possa ensejar interpretação desfavorável ao exercício da judicatura, considerando que a jurisdição exige do Juiz um comportamento escoimado de risco na convivência social (REsp nº 140.809/RJ, DJ de 11/5/98).
Ora, o que se quis acentuar é que a vida de um Magistrado é vista por muitos olhos interessados em conhecer as suas fraquezas, o limite da sua resistência, o tamanho das suas ambições materiais. O Juiz decide contra muitos interesses, alguns de pequena monta, outros imensos, com tentáculos poderosos, prontos para atacar, com a chantagem do favor, ou com a ameaça da descompostura pública, da desmoralização.
Não existe a prerrogativa para encobrir essas fraquezas. Está bem claro no magistério de Mário Guimarães, invocando Harold Laski, “que quanto maior for a independência dos juízes tanto mais seguras
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serão as possibilidades de realizarem a sua função”. As prerrogativas do Juiz nada mais são que o sistema de garantias para que exerçam a sua função judicante, são a sua proteção, assim a vitaliceidade, a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos, dentre outras. Mas elas não são cobertores para a conduta irregular, o comportamento incompatível com a dignidade do cargo. Daí a Lei Orgânica da Magistratura estabelecer regras objetivas sobre os deveres dos Juízes.
Em outras palavras, a conduta do Magistrado dá respaldo a essas prerrogativas; se ele se comporta de modo a não merecê-las, cria para si e para toda judicatura a desconfiança da sociedade, que passa a entender as prerrogativas como favores para cobrir a falta de compostura, a desonestidade, fazendo com que o Juiz perca a sua condição de ponto de referência.
A sociedade cobra mais do que nunca; não quer saber de privilégios, busca a igualdade de todos e a transparência. Se os julgadores não são capazes de demonstrar que dispõem de prerrogativas para proteger a própria sociedade contra aqueles que querem atingir o Juiz e obter dele o sucesso na causa, então, não há mais razão para que elas existam. E não são capazes sempre que ofereçam exemplos de má conduta, de agressão à moralidade vivida, à lisura do seu comportamento pessoal e profissional.
Ao Juiz só é possível responder às cobranças com a demonstração efetiva de que está cumprindo com honradez o seu dever, que está na linha da sua deontologia, sem a demagogia da transparência pela transparência, sem que a sua espinha esteja curvada para ninguém, nem mesmo para o tribunal da opinião pública. Se o clamor social fosse o único tribunal existente, não haveria justiça, porque tanto a hostilidade quanto o aplauso das massas são resultado das emoções coletivas, do impacto dos fatos na consciência social. Essas emoções prevalecerão se não houver Juízes respeitados que decidam com a sua consciência,
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independentes, suposto que considerem a cultura do seu tempo, a moral da sua comunidade.
Daí que fundamental, hoje, que o próprio Judiciário esteja preparado para apreciar a conduta dos seus membros, sem excesso, sem que seja resposta a este ou aquele fato, mas como rotina preservadora da dignidade institucional, da autoridade do julgado emitido. Não é preciso que ninguém de fora ensine como agir com seriedade, rapidez e competência para separar o bem do mal, para retirar, conquanto dolorosamente, aqueles que agem fora do espaço deontológico possível. Ninguém deve ter o espírito punitivo como objetivo, mas, sim, com a bondade que faz a justiça ser efetivamente um equilíbrio entre a pretensão e a prestação, serenidade para decidir o que é certo e o que é errado, condenando aquele que penetrou na seara do errado, com todas as chances para que ele prove o contrário.
Por tudo, vê-se a importância das escolas da magistratura, do estágio probatório, do acompanhamento permanente dos Juízes nesse período, separando o conhecimento e o comportamento, pressupondo que aquele foi aferido no concurso público. E, demais disso, ensejando o aperfeiçoamento constante dos Magistrados, trazendo-os para a comunidade do estudo, da atualização.
E a sociedade está mais exigente, mais dura com o agir dos Magistrados. Mas, ao mesmo tempo, mais confiante. Nunca tantas demandas chegaram e tantos julgados foram proferidos; nunca tantos reclamaram tanto para pedir a proteção da Justiça aos direitos que alegam ter; nunca tantos foram tão beneficiados por decisões judiciais coletivas, na compreensão dos direitos da cidadania, reforçadas a partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor. E agora ainda mais com a experiência dos Juizados Especiais, bem-aventurada criação do constituinte dos oitenta, fazendo com que nossos jovens Juízes sejam depositários de tantas esperanças de melhor distribuição da justiça.
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Essa maior exigência da sociedade, esse grito angustiado de cobrança, eco de uma sociedade que ainda agasalha desigualdades entre os que vivem de rendimentos fixos ou salários e aqueles que vivem de participação nos rendimentos do capital, está encontrando um campo arado nas decisões judiciais sobre o comportamento dos Juízes, no âmbito do controle disciplinar.
Vale a pena lembrar três julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto.
Antigo precedente, de que Relator o então Ministro Vicente Cernicchiaro, não hesitou em confirmar punição de Magistrado que em um período de dez anos na função prolatou apenas quatro sentenças criminais de mérito e 36 civis da mesma natureza. Já o acórdão recorrido, da Bahia, consignou logo na ementa que a “impetrante, como magistrada, não poderia ter cometido falta mais grave que a desídia quanto às suas obrigações”, merecendo a aposentadoria compulsória. E no Tribunal Superior destacou o voto condutor que o cidadão não pode ficar à mercê da boa vontade do julgador para decidir as questões fáticas emergentes do convívio social (RMS nº 10.268/BA, DJ de 23/8/99).
Em outra oportunidade, estando o impetrante em estágio probatório, o Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Vicente Leal, decidiu que o Magistrado em tal período não tem a proteção constitucional da vitaliceidade, podendo ser exonerado desde que não demonstrados os requisitos próprios para o exercício da função jurisdicional, tais como idoneidade moral, aptidão, disciplina, assiduidade, eficiência e outros, apuráveis as circunstâncias em processo especial de vitaliciamento, afastando a incidência do art. 27 da LOMAN (RMS nº 6.675/MG, DJ de 1º/9/02).
Outro precedente apreciou decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso que afastou dois Juízes por conduta reveladora de
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procedimento incompatível com a condição ética e funcional de um Magistrado, assim, a solicitação, usando das funções que exercem, de empréstimo de elevada soma em dinheiro a um determinado advogado militante, o qual providenciou empréstimo bancário sob sua responsabilidade, tudo para que os Juízes comprassem área de terra, sem terem efetuado o devido pagamento, ademais de outras graves irregularidades como demarcação unilateral da área adquirida, prisões arbitrárias. O voto condutor mostrou que fazer prova contra um Magistrado
em pleno exercício de suas funções é quase impossível. Como no caso se trata de juízes em cidades pequenas do interior de Mato Grosso, é fácil imaginar o poder e a capacidade de intimidações deles. Não é fácil encontrar alguém disposto a depor ou fornecer prova contra um magistrado e muito menos com ele em pleno exercício. Também não se deve admitir que Juízes acusados até de ações criminosas possam continuar a julgar, enquanto estão sendo processados. Um juiz que não soube manter conduta irrepreensível na vida pública e particular, não se mostrou digno das altas funções a ele atribuídas e é acusado de pedir vultoso empréstimo a advogado e de não pagar, de enganar um velho paralítico, de vender a um velho alquebrado de 90 anos, propriedade que a ele não pertence, de julgar em causa própria e de praticar várias outras irregularidades graves, não pode continuar a julgar seus semelhantes, enquanto não forem apurados estes fatos (RMS nº 2/MT, Relator o Ministro Garcia Vieira, DJ de 21/8/89).
O que se verifica é que a tutela jurisdicional está voltada em todas as circunstâncias para a efetiva garantia da dignidade da Magistratura, sendo os atos contrários, tanto profissionais como pessoais, agressões à instituição, isto é, atingem todos os Juízes. Não há distinção a fazer, tomando-se o Juiz como figura que deontologicamente está obrigado a agir no espaço da moralidade.
Mas não é só. O Juiz tem diante de si o dever de concretizar o trabalho do legislador. A lei só está concretizada quando interpretada e aplicada por ele. Por isso, não é um trabalho simples. É um trabalho que
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exige perseverança. A distribuição da justiça em um país como o nosso, com muitos processos e poucos a julgá-los, impõe ao Magistrado uma rotina que não pode ser cumprida sem disciplina: disciplina para dar conta de seu trabalho, disciplina para não retardar a outorga da jurisdição, disciplina para respeitar a lei, disciplina para construir no caso concreto, sem fazer com que este seja o desaguadouro de suas insatisfações e crenças pessoais, disciplina para não ceder a sua independência aos caprichos das suas conveniências, disciplina para seguir a lição de Black, isto é, se a linguagem da lei é ambígua, ou se enseja duas construções, o Tribunal pode e deve considerar os efeitos e as conseqüências de uma e de outra para adotar a que torne a lei efetiva e produza os melhores resultados (Interpretation, pág. 100).
O Juiz trabalha com as fontes, ainda que freqüentemente procure apenas uma delas que é a lei. E nesse trabalho ele se dedica a interpretar e aplicar a lei diante do caso concreto. Em razão do volume de demandas ele, com indesejável freqüência, não encontra tempo para refletir sobre a realidade que está em julgamento. E, se tem consciência social, sente-se atraído pela escola crítica e a possibilidade de ampliar os horizontes da interpretação e aplicação buscando a solução mais fácil do Direito além da lei, do Direito amparado no seu próprio senso de justiça, nas suas crenças pessoais. Esse é o risco que o julgador não deve correr porque ameaçará com tal comportamento todo o sistema democrático que tem no Poder Judiciário o instrumento para assegurar o primado da lei e do Direito. Se o Juiz abandona esse cenário, pondo-se a emitir juízos desvinculados da ordem jurídica que lhe incumbe preservar, a sociedade não terá mais nem Justiça nem liberdade, porque Justiça e liberdade estarão limitadas ao juízo de valor de um Juiz ou Tribunal.
Veja-se, mais uma vez, a lição de Cardoso, como disse antes, leitura obrigatória de todos os juízes na verdadeira acepção da palavra:
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Se perguntardes como saberá o juiz que um interêsse sobrepuja outro, poderei responder-vos, apenas, que o seu conhecimento deverá provir das mesmas fontes que inspiram o legislador, a experiência, o estudo, a reflexão; em resumo, da própria vida. Aqui, na verdade, encontra-se o ponto de contacto entre o trabalho do legislador e do juiz. A escolha de métodos, a estimativa de valores, tudo deve ser guiado, no fim, por considerações semelhantes, seja no caso de um, seja no caso de outro. Cada um dêles, realmente, está legislando dentro dos limites de sua competência. Não há dúvida de que os limites para o juiz são mais estreitos. Êle legisla apenas para suprir lacunas e encher os espaços vazios no direito positivo. Até onde pode ir sem ultrapassar os confins dos interstícios, eis o que não pode ser rigorosamente delimitado em um mapa para seu uso. Deve aprendê-lo por si próprio, à medida que adquire o senso de conveniência e de proporção, proveniente dos anos de hábito na prática de uma arte. Mesmo no que se refere às lacunas, há restrições, não fàcilmente definidas, mas sentidas por todos os juízes e juristas; apesar de serem extremamente sutis, atalham e circunscrevem sua ação. São estabelecidas pelas tradições dos séculos, pelo exemplo de outros juízes, seus predecessores e colegas, pelo julgamento da classe e pelo dever de aderir ao espírito difundido do direito (op. cit. págs. 64/65).
Com isso, o que se quer assinalar é que aquele comportamento de acordo com a moral, aquele padrão e dignidade, de honradez, de recolhimento, de não-exposição a situações que possam gerar interpretações malévolas, tem a companhia do dever do Magistrado perante a lei. Aquele que julga sem a cobertura da lei não está cumprindo o seu dever de julgar. E também aqui há uma cobrança e uma exigência da própria sociedade. Desde a concessão de uma medida liminar quando a lei expressamente a veda, nos casos de mandado de segurança para a obtenção de vantagens pecuniárias, até a exorbitância, o exagero, o abuso na fixação do valor do dano moral.
Tem o Juiz sobre seus ombros uma terrificante responsabilidade, e não menor fonte de geração de expectativas para todos os que procuram justiça, daí a razão de sua importância na sociedade, do rigor na cobrança maior de seus deveres, mas, também,
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Ética do Juiz
das suas prerrogativas, da sua proteção, da garantia da sua independência, da sua liberdade.
Mas a bem-aventurança é que são milhares de Juízes que dão exemplo de dignidade, de honradez, de coragem, de dedicação, como os Juízes eleitorais, homenagem especial que se deve fazer aos que são zelosos guardiões da vontade popular. Por isso, as exceções devem ser cada mais exceções, exaltada a vida vivida, tantas vezes cheias de angústias, libertadas pela alforria do reconhecimento da sociedade de que são os Juízes os atores do bem, da verdade, da Justiça, para tantos que dela precisam, necessidade que também é felicidade, porque é a realização de uma vocação.
O monge Thich Nhat Hanh, Prêmio Nobel da Paz, no seu livro A Guide to Walking Meditation, conta que alguém perguntou a Buda: “O que o senhor e seus discípulos praticam?” Buda respondeu: “Nós nos sentamos, nós andamos, nós comemos”. O inquiridor continuou: “Mas, senhor, qualquer um se senta, anda e come”. Ele, então, respondeu: “Quando nos sentamos, sabemos que estamos sentados. Quando andamos, sabemos que estamos andando. Quando comemos, sabemos que estamos comendo”. É uma grande, valiosa e simples lição da consciência do fazer, da consciência do que estamos fazendo, quando fazemos algo. É o que torna o Juiz verdadeiramente completo: quando nós julgamos, sabemos que estamos julgando.


fonte: http://bdjur.stj.gov.br

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